A espera das Pacaças...
Saí novamente com o Carlos, apenas os dois, chegaram notícias de pacaças numa zona com uma lagoa. Este ano tem sido muito seco, parece que não há forma de fazer chover em Angola, senão nas Lundas ou na zona de micro clima do Wako Kungo.
As pacaças se querem água têm obrigatoriamente de dirigir-se para os poucos pontos onde ela se encontra, há pouca nos rios – um fio de água na maior parte dos casos, e as lagoas, mesmo com pouca, são os locais eleitos onde podem encontrar água para beber mas, sobretudo, banhar-se. Temos a esperança que com uma pontinha de sorte este possa ser o nosso dia, sentimos que algo pode realmente acontecer. Desde que cheguei que ainda não voltei a encontrar-me com este aglomerado de músculos, força bruta, ímpeto e agressividade. Diziam-me ainda que foram avistados dois grandes pacações pretos, um must, um sonho, uma fantasia em grande para qualquer caçador que se digne em Angola. Mas no meio de toda esta ansiedade não havia certezas de nada e sabemos como as situações se podem tornar extremamente caprichosas e tudo funcionar ao contrário do previsto.
O plano passava por irmos até à lagoa, procurar perceber bem de que lado as pacaças costumavam entrar para beber e escolher um posto que nos dissimulasse e esperar que no momento da verdade da entrada dos bichos, o vento ajudasse para lhes fazermos um tiro limpo a 100/120 metros que é o ideal. De resto era esperar, e esperar … o que mais se faz nestas paragens.
Esperamos um dia, nada. Ficamos mais dois dias e as noites também. Tudo vinha beber à lagoa, até um porco espinho, mas de pacaças NADA! Mal dormido, a comida e as bebidas a acabar, as preocupações do trabalho a acumular em Luanda, tudo me vinha à mente, enquanto o Carlos, encostado às mochilas, passava belos momentos de sestas contínuas. Uma ou outra vez tive o acordar face à roncadeira que fazia, enquanto eu lamentava não conseguir fazer a mesma coisa, com igual descontracção. Alguma mosquitada também não me dá paz. Estava a ficar algo frustrado, e sabia bem que o mais certo era isto nos acontecer, mas tinha algo cá dentro que me dizia para insistir nesta provação, até que se dá … o inesperado.
Nós sempre convencidos que as pacaças entrariam de noite, elas resolvem antecipar-se para o final da tarde, ainda com alguma luz ténue. Muito lentamente, apenas dois membros do grupo aparecem do outro lado da lagoa onde tínhamos visto alguns rastos de outras noites. Alguma passarada activa nas margens e outra a sobrevoar-lhes o espelho de água na frente parecem deixá-las confiantes. Não são muito grandes, pego no binóculo que me confirma serem gente nova e menos avisada para entrarem daquela maneira numa zona onde sei que já foram atiradas por alguém, mas a sede é tramada … e elas já não iam ali beber há vários dias! Acordo o Carlos e puxo logo a carabina para ao pé de mim.
A ansiedade e a tensão tomam conta de nós de tal forma que até quase deixamos de respirar. Nada pode perturbar aquele momento. Só temos olhos e ouvidos para o que se passa na margem do outro lado, com os meus botões rezo para que o vento não nos pregue nenhuma partida de última hora. Os binóculos parece que deixaram de ter suficiente capacidade de ampliação, no que dá a tensão do momento e o sentir que podemos estar perante um bom lance. Fico também curioso se aparecem ou não os dois pacações pretos, temos de ter calma, aguardar a entrada de mais alguma, … confirmar quantas são efectivamente.
Até que aparecem mais cinco na borda da mata. Estas sim são pacaças a sério. E param, mesmo com as outras duas já ao pé da água, hesitam, medem e avaliam tudo à volta. Ficam algum tempo hirtas no mesmo local a minha vontade é já apontar e fazer-lhes um tiro, tenho receio que algo as assuste e repentinamente se vão embora.
São momentos de angústia devido à incerteza, mas com a adrenalina sempre em curva ascendente. Como é que estas sensações contraditórias podem constituir um vício tão grande para um caçador? Como é que isto nunca cansa e me deixa sempre inebriado e deserto por mais uma dose? E quanto mais cedo melhor! Os atavismos revelam-se em toda a sua devastadora magnitude.
O Carlos segura-me o braço e gesticula para continuarmos a aguardar. Lentamente vou puxando as mochilas para apoiar a carabina e deixá-la já no sítio para o tiro. Meto também mais quatro balas no bolso, nunca se sabe se não podem ser precisas para algum “arranque”!
Eis que as cinco novas protagonistas decidem avançar também de cabeça baixa para a água, já se tranquilizaram o suficiente para isso. As duas mais novas já estão quase com água pelas barrigas, não tardará muito que o banho seja completo. Ficamos nisto mais uns vinte minutos, estou a chegar ao meu limite de espera, parece-me que é chegado o momento porque das bordas da mata o silêncio é total. Sete pacaças, se calhar o único grupo de vários quilómetros em redor, cada vez lhes dão menos paz por estas bandas. O levantar do polegar do Carlos dá-me a confirmação, chegou o momento da verdade.
Levanto a carabina, alinho perfeitamente o óculo com o olho direito, o retículo cai em cima da que se me afigura mais avantajada. Vou deixá-la acabar de beber para quando se endireitar lhe fazer um tiro de espádua. Começo a acariciar o gatilho da carabina, ela também já sabe bem o que está para acontecer, estamos quase a fundir-nos, a derreter entre nós…!
Dois pequenos pássaros escolhem precisamente este momento para pousarem no lombo da pacaça e debicam algo. Devem ter-lhe feito cócegas porque a pacaça encolhe ligeiramente o lombo e começa a fazer tremer a pele, baixa novamente a cabeça, parece algo desconfiada ou desconfortável daquela companhia. Começa a dar alguns passos em frente e pára novamente, ficou mesmo de perfil, perfeita, tenho de me despachar, tem de ser já. Retículo novamente em cima da espádua, tudo calmo. São os tais 100 metros bem medidos, inspiro a última vez, faço a pausa, e decido à última hora apontar-lhe antes ao coração.
O tiro estoira, a bala assobia sobre a água, apercebo-me do impacto seco. Atingida, a pacaça salta, escoceia no ar, mas ajoelha de imediato e dá-se a debandada e confusão total.
As duas mais novas metidas dentro de água parecem impulsionadas a jacto para chegarem a terra firme e levantam duas cortinas laterais de água ao sair. O ruído dos cascos é medonho, a expressão completa da força bruta deste animais. Empurram-se, precipitam-se, abrem e esmagam tudo à entrada rápida para a mata, levantam uma nuvem de poeira. Não houve qualquer cerimónia, fazem pela vida, precisam de se por a salvo de mais uma “cilada” que lhes fizeram.
A que atirei ainda consegue, de joelhos, fazer mais algumas dezenas de metros na tentativa vã de seguir as outras, foi seriamente tocada pela bala. Mas a vitalidade destes animais é impressionante, já introduzi nova bala na câmara e espero ainda a ver se preciso de lhe dar mais algum tiro, mas não. Acaba por cair para o lado esquerdo, as patas elevam-se desgovernadas no ar, um último estertor, a berra final agonizante, o último sopro de vida chega rápido e cai novamente o silêncio total nas margens da lagoa.
Acabou, está feito.
- Vamos lá ver. Diz-me o Carlos.
Quando lá chegamos confirma-se que o tiro foi de coração, é tiro que em condições normais não perdoa, mesmo num animal deste porte e força. A abundância de sangue no chão é também reveladora da eficácia do projéctil 30-06 (Lapua, 180 gr), mas no sítio em que foi até uma .243 a deitava ao chão desta maneira.
Vamos até ao local onde entraram na mata. Tudo está partido, árvores e arbustos a pingar seiva. Os poderosos cascos bem marcados, aqui e ali o chão arranhado, quando, na precipitação, escorregavam a mudar de direcção. Que ninguém lhes aparecesse à frente neste momento, ninguém as conseguiria fazer parar. Não voltarão tão cedo a esta lagoa.
Damos ainda uma pequena volta nas redondezas e fazemos uma descoberta inesperada. Encontramos mais rastos de pacaça que não têm nada a haver com os acontecimentos que presenciamos. Já com má visibilidade e de lanternas acesas damos com duas camas inclusive.
- Carlos, estás a pensar o mesmo que eu?
- Sim, estavam aqui mais, Miguel. Devíamos ter esperado mais tempo. Estas também iam entrar à água. Afinal devem ter chegado aqui muito antes de as primeiras aparecerem perto da água. Nem nos apercebemos de elas chegarem. Quem diria?
Quem diria, de facto! O mato e os bichos têm destas surpresas. Se calhar estavam aqui também os tais pacações pretos e não os chegamos a ver. Uma grande oportunidade perdida. Sabe-se lá, quando é que poderemos voltar a ter perto uma destas pacaças pretas. Se calhar nunca mais! O Carlos acha que seriam mais umas dez pacaças e, entre elas, de certeza os maiores machos.
Agora é tempo de voltar à que foi abatida. Temos de chamar mais alguém pelo telefone para nos ajudar na desmancha parcial para a podermos carregar na carrinha. Vou dar-lhes a maior parte da carne. Enquanto não chegam, vamos buscar a carrinha para ao pé da pacaça, deixo-a com os faróis voltados e ligados. Já não se vê muito bem e o manto da escuridão vai fechar rapidamente sobre nós.
O cansaço acumulado que tenho é muito, pouca ou nenhuma coragem me resta para a esfola, o relógio confirma-me o adiantado da hora. Ainda temos o regresso a casa, arrumar tudo, guardar a carne devidamente na arca frigorífica, o último teste do dia à nossa depauperada resistência. Mas tudo isto faz parte e me sabe bem. É um tipo de cansaço especial, delicioso de sentir, quando tudo pára e me posso deixar cair de vez para descansar já em casa. Fecho os olhos, reavivo pela memória alguns dos momentos vividos. Nem sempre se chega a casa arrasado, mas triunfante. Um dia é da caça, outro do caçador! Mas há ainda uma outra grande certeza que cada vez mais repito no que concerne a búfalos, nas alturas da verdade, haja o que houver, encarregam-se sempre de fazer abrir a caixinha das surpresas…!